Negócio jurídico processual no Novo Código de Processo Civil
É de amplo conhecimento que no ano de 2015 o Brasil ganhou um novo código de processo civil, a Lei n°13.105/2015, conhecida como o Novo CPC, que trouxe inúmeras alterações e novidades nas regras processuais.
Dentre uma dessas inovações do NCPC está a figura do negócio jurídico processual, prevista no art. 190 daquela Lei e que reza o seguinte:
Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
Isso significa que, em determinados casos, a Lei permite que as partes possam alterar as regras processuais (tais como as que envolvem prazos, provas, renúncia a eventual recurso, dentre outras) para adequá-las às necessidades da situação discutida no processo; privilegiando com isso a efetividade e a celeridade processual.
Em demandas complexas os benefícios do negócio jurídico processual são muitos, pois permite maior agilidade ao processo, economizando principalmente tempo, que em muitos casos, como, por exemplo, nos processos de recuperação judicial, é crucial para a eficácia do procedimento.
Negócio jurídico processual no procedimento da recuperação judicial
O procedimento da recuperação judicial é regido pela Lei de Falências e Recuperações Judiciais (n° 11.101/2005) e tem a finalidade de viabilizar o soerguimento da empresa, ou seja, através de mecanismos autorizados na referida lei, proporciona uma nova chance às empresas em crise financeira de se reorganizarem.
Com essa nova oportunidade é permitido às empresas em crise manter-se em atividade, preservar os postos de trabalho, pagar credores e até tributos, a fim de que a situação de crise seja superada, em observância ao princípio da preservação da empresa e propiciando estímulo ao crescimento econômico.
No entanto, a Lei de Falências e Recuperações Judiciais não previu todas as possibilidades de situações que podem ocorrer em um processo de recuperação judicial, por isso no seu art. 189[1] consta a possibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.
Eis aí a autorização para aplicação do instituto do negócio jurídico processual previsto no NCPC ao procedimento da recuperação judicial.
Além disso, o negócio jurídico processual também é aplicável ao procedimento de recuperação judicial a fim de dar celeridade ao processo, pois em razão das diversas etapas exigidas em tal procedimento ele costuma ser demorado, mesmo em se tratando de comarcas que disponham de varas especializadas em assuntos falimentares.
Ademais, considerando que o procedimento da recuperação judicial tem viés negocial, pois para preservar a empresa e superar a crise nela instaurada é necessário que haja negociação entre devedor e credores, não há óbice para a aplicação do negócio jurídico processual àquele procedimento a fim de torná-lo mais eficiente.
Sobre esse tema, o ministro Luís Felipe Salomão destacou em sua obra que as normas de recuperação judicial devem buscar a efetividade de modo a acompanhar a velocidade das transações mercantis e a dinâmica da atividade econômica.[2]
No caso da recuperação judicial, a negociação entre devedores e credores pode se dar em relação aos direitos destes (os quais na maioria dos casos acabam sendo modificados no plano de recuperação), aos valores (são alterados e sofrem deságio) e aos prazos e condições de pagamento, dentre outros.
Entretanto, no processo de recuperação judicial não é exatamente tudo que pode ser negociado, pois há atos do procedimento, considerados essenciais, que não podem sofrer alterações por vontade das partes, como, por exemplo: a suspensão das ações por 180 dias (o stay period), a divisão de credores em classes e a deliberação em assembleia por maioria.
Então, no procedimento da recuperação judicial, o negócio jurídico processual se dá quanto à forma dos atos processuais, à fixação de prazo para a realização de atos no processo e à alteração de atos do procedimento, como, por exemplo:
- devedor e credores podem pactuar a forma de manifestação da vontade dos credores a respeito do plano, estabelecendo o voto escrito e não em assembleia, desde que seja possível ao administrador judicial conferir a autenticidade do voto;
- as partes podem ajustar nova modalidade de comunicação dos atos processuais, desde que sejam seguras, como, por exemplo, a publicação no endereço eletrônico do administrador judicial, eliminando-se as custosas publicações de editais;
- é possível que as impugnações sejam processadas extrajudicialmente pelo administrador judicial, que a impugnação integralmente processada seja protocolada em juízo para decisão, poupando-se o cartório de repetidos atos de comunicação;
- podem ser ajustadas sessões de mediação, de modo a permitir que os interessados apresentem suas necessidades e a devedora proponha um plano para a superação da crise que atenda aos diferentes grupos de credores;
- é viável a fixação de calendário processual[3], com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia geral de credores;
- também é possível a eliminação ou a redução do prazo de fiscalização judicial, estabelecendo as partes que o processo será encerrado com a decisão de concessão da recuperação, exatamente como se dá na recuperação extrajudicial.[4]
A título de exemplo recente de processo de recuperação judicial em que houve a aplicação da figura do negócio jurídico processual, cita-se o caso da Editora Três, autuado sob o n° 1033888-36.2020.8.26.0100, tramitando perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo/SP.
Nesse caso, a realização de negócio jurídico processual foi sugerida pelo administrador judicial, tendo proposto, por exemplo, que as habilitações e as objeções sejam encaminhadas diretamente a ele, com o que concordou a empresa em recuperação, a fim de promover medidas de otimização do procedimento.
Nesse cenário, resta evidente que o negócio jurídico processual é perfeitamente aplicável ao procedimento da recuperação judicial, mostrando-se como uma ferramenta capaz de proporcionar segurança jurídica e a tão necessária celeridade ao processo, o que certamente contribui para que o fim do instituto recuperacional, a preservação da empresa, seja alcançado.
[1] Art. 189. Aplica-se a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei.
[2] Modernização da recuperação judicial – Migalhas (uol.com.br)
[3] Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.
§ 1º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.
§ 2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.
[4] https://migalhas.uol.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/284720/o-negocio-juridico-processual-na-recuperacao-judicial